Coluna | Seu Direito
Dra. Christiane Reyder
Advogada, Consultora e Mentora em proteção de dados. Mestre e Doutoranda em Direito pela Univ. Lisboa.
Perfil no Instagram: @chrisreyder_protecaodedados
Vídeo de Festa Privada: um convidado pode exigir acesso ao registro das suas imagens?
23/06/2023

Esta questão me foi colocada por uma pessoa e acredito que possa ser uma dúvida comum.

A Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018) dispõe que as suas regras não se aplicam ao tratamento de dados pessoais “realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos” (art. 4º, I). 

Questionou-se então se um convidado num evento privado, realizado na casa de alguém, não teria direito a ter acesso à suas imagens, captadas por câmeras de vídeo que registram a festa.

Para se afirmar que a LGPD não se aplica à captação destas imagens, não basta que sejam coletadas no ambiente privado. A hipótese legal de exclusão da aplicabilidade da Lei se dirige à finalidade do tratamento dos dados: “fins exclusivamente particulares e não econômicos”. 

O fim do tratamento de dados, portanto, deve cumprir dois requisitos para afastar a incidência da LGPD: além de ser “não econômico”, este fim deve ser “exclusivamente particular”. E este é o ponto que pretendo destacar. 

O regime jurídico da proteção de dados pessoais brasileiro é fortemente inspirado no modelo europeu, sendo a atuação e as decisões das Autoridades Europeias fonte de aprendizado e aprimoramento para interpretação e aplicação da LGPD, inclusive para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) do Brasil. A caracterização do tratamento de dados como “realizado para fins exclusivamente particulares” já foi objeto de decisão pelo Tribunal de Justiça de União Europeia em 2003:

Uma jovem havia criado uma página na Internet, sem fins comerciais, ao contrário, para atividades “benévolas e religiosas”. 

A defesa arguiu que a situação de uma pessoa natural, que no uso da sua liberdade de expressão, cria páginas na Internet no âmbito de uma atividade não lucrativa ou mesmo como um passatempo, não deve se sujeitar às regras da proteção de dados.

O Tribunal, considerando o escopo da legislação de proteção de dados, entendeu que a expressão “atividade exclusivamente pessoal ou doméstica”, contida na legislação, deveria ser interpretada como as atividades que se inserem no âmbito da vida privada ou familiar dos particulares, o que não é o caso de uma publicação, na Internet, de maneira que os dados são disponibilizados a um número indeterminado de pessoas. [TJUE, Processo C-101/01, decisão de 06.11.20023]

Considerando que a ANPD do Brasil deve seguir o entendimento vigente há muito tempo nos países que desenvolveram o modelo de regime de proteção de dados que o Brasil adotou, a expressão “fins exclusivamente particulares” da LGPD diz respeito a um círculo mais próximo da convivência da pessoa que realiza o tratamento dos dados, como o círculo familiar e pessoal. Tendo por base a finalidade da proteção de dados, de proteger as informações pessoais contra possíveis usos por terceiros sem o conhecimento ou o controle por parte do seu titular, este é o entendimento que realiza o escopo da norma.

Voltando à questão da captação de imagens de vídeo numa festa privada, se o anfitrião tiver o propósito de publicar as imagens abertamente na internet, ainda que num perfil particular, o fato da publicação estar direcionada a um número indeterminado de pessoas não permite caracterizar esta publicação como tendo “fins exclusivamente particulares”. A mesma interpretação se aplica à publicação em grupos grandes de WhatsApp ou cuja composição não permita o seu enquadramento como parte do círculo familiar ou pessoal de quem publica.

Não se caracterizando o tratamento dos dados como de “fins exclusivamente particulares”, aplica-se a LGPD desde o início, ou seja, o anfitrião deve ter já identificado um fundamento legal, aplicado os princípios da proteção de dados e garantido os direitos dos titulares desde a organização da festa. 

Por outro lado, se o anfitrião realiza a festa e capta as imagens de vídeo para guardar, como um registro particular e possíveis exibições entre os amigos e familiares, mas depois resolve fazer ampla divulgação das imagens captadas, é preciso separar as operações de tratamento de dados. A captação das imagens não tinha um fim sujeito às disposições da LGPD, mas a operação de tratamento representada pela publicação das imagens já atrai a aplicação da LGPD, pelo que, antes da divulgação, deve ser colhido o consentimento daqueles que aparecem nas imagens, cumpridos os princípios da proteção de dados e resguardados os direitos dos titulares destas imagens. Mesmo se desfocados os rostos das pessoas que aparecem no vídeo, outros elementos característicos podem levar à identificação das pessoas, de modo que, para se resguardar, é aconselhável coletar o consentimento delas. 

Por outro lado, se a captação das imagens for mesmo para “fins exclusivamente particulares e não econômicos”, a realização deste tratamento de dados não precisa observar as regras da LGPD, mas isto não significa que o titular das imagens fique desprotegido. Permanecem vigentes os seus direitos fundamentais à privacidade, à imagem, à autodeterminação informacional e à proteção de dados, todos eles de status constitucional e de aplicabilidade direta, ou seja, não dependem de lei infraconstitucional para serem invocados. É pressuposto para o exercício destes direitos, especialmente o da autodeterminação informacional, ter acesso aos próprios dados – neste caso, às imagens de vídeo.

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